Registo
Camões, nosso contemporâneo
José Augusto Bernardes

Nos quinhentos anos da incerta data do nascimento de Luís de Camões, José Augusto Bernardes, convidado pela Electra, escreve sobre a vida e a obra do grande poeta português, falando também das políticas da memória, do ensino da sua obra e do contributo de Camões para a ideia moderna de literatura. Este professor e investigador coordenou o Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos e foi director da Biblioteca-Geral da Universidade de Coimbra. É o comissário-geral das Comemorações do V Centenário do Nascimento de Luís de Camões. Tem uma vasta obra sobre autores e temas literários, nomeadamente do século de ouro português.

Mario Botas

Mário Botas, No tempo que de amor viver soía (Camões), 1980 © Fotografia: João Neves / Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, Lisboa

 

introdução

Embora nem sempre pareçam lineares, as políticas da memória obedecem a princípios de carácter geral. Sabemos, desde logo, que as celebrações do passado (todas elas) se destinam a atrair a atenção sobre o presente. Não pode ser de outra forma: o passado que se evoca é construído e reconstruído de acordo com as necessidades que se fazem sentir em cada momento.

O segundo princípio relaciona-se com o objecto da celebração. Homenagear uma figura envolve mais riscos do que celebrar um acontecimento. Celebrar uma personalidade implica, muitas vezes, o silenciamento dos aspectos que perturbam o consenso. Assim acontece com a generalidade dos heróis, mesmo que se situem em fases recuadas do tempo. No caso português, é isso que sucede, por exemplo, com Nuno Álvares Pereira, Vasco da Gama (que morreu há quinhentos anos exactos), o Padre António Vieira, o Marquês de Pombal, entre muitos outros.

Ora, nada disto se passa com Luís de Camões.

Ainda hesitante, em termos de figurino e de rumo, o país prepara-se para assinalar uma efeméride redonda, que incide, ao mesmo tempo, sobre a figura, sobre a obra e sobre esse tempo especial que é, para nós, o século xvi. É altura de tentar identificar os motivos que explicam esse mesmo estatuto de excepção. Até porque, no caso do nosso poeta maior, essa aura abrange não apenas o plano cívico, mas também o educativo, o histórico-cultural e o estético.

aclamação

os sinais

Luís de Camões morre em Lisboa no ano de 1580. Morre de forma quase anónima, talvez num hospital, vitimado por doenças venéreas. Alguns estranham o anonimato da morte. Afinal, a publicação de Os Lusíadas deveria ter-lhe assegurado um maior reconhecimento.

Embora em escala discreta, esse reconhecimento terá porém existido. Conhecemos o louvor registado por Pero de Magalhães Gândavo, que se refere encomiasticamente a Camões nas Regras que Ensinam a Maneira de Escrever… Nessa obra, impressa em 1574, o humanista e gramático refere-se ao autor de Os Lusíadas nestes termos: «O nosso famoso poeta Luís de Camões de cuja fama o tempo nunqua triumphará.» Trata-se do cronista da História da Província de Santa Cruz, livro que contém os dois únicos poemas de Camões impressos depois de 1572. A História foi editada em 1576, na oficina de António Gonçalves, a mesma onde Os Lusíadas tinham sido compostos, quatro anos antes.

Um outro sinal de importância e aplauso consiste na impressão, quase simultânea, de duas traduções castelhanas da epopeia camoniana (Salamanca e Alcalá de Henares). Datam ambas de 1580 e parece terem sido patrocinadas por Filipe II. Supõe-se que pelo menos uma delas chegou às mãos de Camões: aquela que saiu em Salamanca, traduzida e anotada por Bernardo Gómez Tapia.

Por fim, existe a tença, que consistia em quinze mil reais brancos. Foi-lhe concedida na dupla qualidade de soldado e de poeta. Embora de valor relativamente modesto, e paga com irregularidade, não deixa de representar um sinal de aprovação relativamente incomum por parte do poder.

Mario Botas

Mário Botas, Que poderei do mundo já querer (Camões), 1980 © Fotografia: João Neves / Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, Lisboa

 

"Outros nomes grandes do nosso século de ouro (Gil Vicente e Sá de Miranda) foram sendo editados, mas de forma descontínua e rarefeita. Só os livros de Camões foram impressos, sem hiatos, desde 1572 até aos nossos dias."

É verdade que são poucos os sinais e que nem todos possuem o mesmo teor probatório. A consagração virá só depois da morte e traduz-se sobretudo numa presença excepcional nos prelos. Era através da letra de forma que se firmava a fama de um escritor. Nesse sentido, pode dizer-se que ninguém foi objecto de uma fortuna editorial tão intensa e continuada. Outros nomes grandes do nosso século de ouro (Gil Vicente e Sá de Miranda) foram sendo editados, mas de forma descontínua e rarefeita. Só os livros de Camões foram impressos, sem hiatos, desde 1572 até aos nossos dias.

O sinal mais recente de que o rasto de Camões permanece bem vivo no espaço público surgiu há pouco tempo, vindo de uma área imprevista. Falo da atribuição do seu nome a um novo aeroporto. Como é sabido, a localização da infra-estrutura foi objecto de uma das mais prolongadas e intensas controvérsias das últimas décadas. Em ambiente eleitoral ou fora dele, as diferentes forças partidárias prometeram decisões firmes e tecnicamente sustentadas. Até que, poucos dias após a posse, o actual Governo decidiu finalmente a sua localização. Mesmo prevendo um período de construção não inferior a uma década, a designação foi anunciada imediatamente. Esta atitude só pode ter um sentido: o nome de Camões continua a silenciar polémicas. O facto de esse mesmo nome ter sido associado a um lugar de chegada e de partida é bem aceite no Portugal do século XXI.

A estes sinais somam-se outros. Por serem rotineiros, são menos notados. É o que sucede com o protocolo de Estado, que torna a visita ao túmulo dos Jerónimos num ritual constante. A mais recente aconteceu no passado dia 12 de Julho, quando a infanta Leonor, herdeira do trono espanhol, iniciou a visita a Portugal com a deposição de uma coroa de flores no dito túmulo.

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